O berço do carnaval ocidental
se encontra na Igreja, apesar dos antecedentes na cultura greco-latina. O
próprio nome carnaval lembra esse fato. A palavra “Carnaval” é a combinação de
duas palavras latinas: “carnis” que é carne e “vale” que é uma saudação,
geralmente no final das cartas ou no final de uma conversa. Significa “adeus”.
Então antes de começar o tempo da quaresma na quarta-feira de cinzas, que é
tempo de jejuns e penitências, se reservaram uns dias anteriores para dizer
“adeus” à “carne”.
Pois durante todo o tempo da quaresma não se podia comer
carne, como ainda hoje em algumas regiões. […] De festa de cunho
religioso passou a ser uma festa meramente profana, na qual tudo podia ocorrer
como bebedeiras e até prostituição aberta. Aí a Igreja se afastou, mas nunca
totalmente.
O carnaval possuía no passado e
possui ainda hoje grande significado sociológico e antropológico. Há a intuição
no povo e uma certeza entre os estudiosos de que a sociedade com suas
hierarquias e papéis definidos é uma construção humana. Ela é fruto da vontade,
geralmente, dos poderosos que estabelecem as leis e as ordens que os
beneficiam. É o mundo da ordem estabelecida. A sociedade é assim uma construção
que tem algo de arbitrário. O carnaval é a inversão desta ordem. […]
O carnaval resgata os direitos
do prazer, do corpo embelezado, ou libertado de adereços e roupas. O carnaval,
de forma secular, nos lembra que o céu não é outra coisa que um eterno e
infinito carnaval de Deus e com Deus, onde o ser humano pode ser radicalmente
humano, por isso totalmente livre, livre para plasmar a sua vida, construir a
sua figura e viver de festa em festa.
A Igreja antiga, especialmente a
oriental, a ortodoxa, elaborou toda uma reflexão do céu como uma dança celeste
e Deus como o Grande Dançarino. Criou o universo num momento auge de sua dança:
jogou para um lado as galáxias, para outro as estrelas, depois inventou a fauna
e a flora e num passe mágico de dança, o ser humano. Tudo é fruto do Deus
dançarino.
Não há festa sem bebida e sem comida. Elas expressam a vida. Não
bebemos nem comemos para matar a fome. Isso é outro momento. Bebemos e comemos
para celebrar. E toda festa tem que ter abundância de comida e bebida, senão
não é festa. Mesmo nas comunidades em que trabalhei, muito pobres, as festas
eram feitas com abundante pipoca e coca-cola, a ponto de sobrar. Tem que sobrar
senão a festa não é boa. O carnaval tem sempre excessos. Mas eles não devem ser
entendidos moralisticamente. Eles têm uma função humana: violar a ordem,
afastar os limites, exorcizar os controles, pois tudo isso foi inventado pelos
seres humanos, especialmente, pelos que tem poder de se impor aos outros. No
carnaval se volta ao caos originário.
Ele nunca é caótico, mas criativo. No
carnaval todos tem a sensação: finalmente estamos livres, podemos viver como
gostaríamos, podemos inverter os papéis porque eles não passam de papéis. O
carnaval é uma metáfora do que pode ser a humanidade um dia reconciliada e
feliz. […]
Eu não posso me imaginar o céu
senão como um eterno carnaval ou então uma luminosa virada de ano na praia de
Copacabana, na qual todos se confraternizam, conhecidos e desconhecidos,
chorando de alegria pela beleza dos fogos. Quando alguém chega ao céu, imagino
eu, Deus lhe prepara como recepção um carnaval ou uma festa de virada de ano
com fogos e luzes sem fim. E a alegria começará e o bom é que será então
eterna. Bom carnaval para quem gosta.
“Eu só poderia crer
em um Deus que soubesse dançar.”
(Friedrich
Nietzsche)
Setor Pastoral
2019