A festa de Corpus Christi convida os cristãos a refletirem sobre a materialidade do ser. O cristianismo, apesar das tendências ‘espiritualistas’, é a religião da concretude: fatos históricos, como a vida e a morte de Jesus; o pão e o vinho como símbolos da nossa comunhão com Deus; a “ressurreição da carne” proclamada no Credo. Somos um corpo. Assim como a árvore brota da terra, o corpo humano emerge da evolução do Universo. Somos todos feitos de matéria estelar.
Nosso corpo tem a idade aproximada de 15 bilhões de anos! Sua gestação teve início quando o calor da explosão inicial do Universo ofereceu, a olhos nenhum, a primeira festa cósmica de São João. Fogueiras acesas no firmamento pontilharam de luz a escuridão do céu.
Ali, no bojo dos fornos estelares, o hidrogênio, cozido a temperaturas altíssimas e diferenciadas, engendrou o magnífico colar da escala atômica. Todos os átomos do nosso corpo adquiriram, nas entranhas das estrelas, existência e consistência.
Eram, então, como notas da escala musical que ainda não encontraram o instrumento capaz de fazê-las ressoar em música. Muito tempo depois, os átomos de nosso corpo ganharam pele nas moléculas e vestiram-se com a roupa das células, construindo esse ser que somos. Já não faz sentido falar que somos um corpo dotado de alma. Pouco platônico, São Paulo fala em “corpo espiritual” ( I Coríntios 15, 44) .
O corpo contém o espírito assim como o espírito se consubstancia no corpo. Os jogos labirínticos dos redutos quânticos fazem a energia pulsar em matéria e a matéria expressar-se em energia, unidas no aparente paradoxo das partículas que fluem como ondas e das ondas que se exibem em partículas. Faces sutis de um mesmo perfil coroado pelos elétrons, que brilham em torno do picadeiro desse fantástico circo onde prótons e nêutrons produzem, na proporção exata, o espetáculo do ser.
Tudo isso é o corpo que somos, no qual a carne é tão espiritual quanto o espírito tão carnal, indivisíveis, dualidade sem dualismo, semente contida na árvore contida na semente que contém tronco e galho, seiva, folha e flor, assim como, desde seu início, o Universo nos continha e, desde sempre, Deus nos enlaça em seu abraço amoroso.
Esse corpo que somos é o corpo personificado do Cosmo. Teilhard de Chardin contempla o Universo como Corpo Cósmico de Cristo. “Nele vivemos, movemos-nos e existimos”, acentuam os Atos dos Apóstolos (17, 28). Agora, em nosso corpo, o Universo abandona sua bilenar cegueira e ganha olhos em nossos olhos —espelhos em que ele se contempla e descobre, maravilhado, que é belo. Daí o nome que provém da mesma raiz grega de cosmético, aquilo que embeleza.
Somos a Terra em sua expressão humana. Nós, homens e mulheres, não somos qual o barco colocado sobre as águas. Somos a água moldada em ondas e espumas. Filhos da Terra, trazemos em nosso corpo a mesma proporção de água e sal encontrada neste planeta. Da natureza emergimos e graças a ela nutrimos a nossa vida e encontramos em nosso corpo matas em forma de pêlos, superfícies lisas e ásperas, reentrâncias e protuberâncias, fendas, canais, fontes e cavernas.
Esse corpo que somos dorme e sonha, sofre e goza, sabe-se feliz ou contrai-se em tristeza, esbanja saúde ou fragiliza-se na doença. Sobretudo, é capaz de algo inacessível a todos os outros animais: sorrir. E, no entanto, ainda vivemos num mundo submerso em lágrimas. Porque esse corpo, provido de sentimentos e emoções, guarda rancores, iras e ódios, embora tão capaz de compaixão, ternura e amor.
Esse corpo que somos é morada divina. Porém, ainda profanado pelo trabalho opressivo, abatido pelas guerras, prostituído pela miséria, excluído pelo estado de mal-estar social. Corpo feito para se revestir de dignidade, pleno de direitos. Corpo copo que acolhe vinho e carinho, e se projeta em palavras, como o pássaro lança-se ao vento que imprime vôo às suas asas. Esse nosso corpo, criado à imagem e semelhança de Deus, é idêntico ao corpo de Cristo e, como ele, vocacionado ‘ressurrecionalmente’ à eterna idade, lá onde o tempo se despe do espaço e cede lugar à plenitude do amor.
A cultura da morte faz do corpo objeto de sujeição. A pessoa é reduzida à força de trabalho. Suga-se de seu corpo toda a vida, sem que lhe pague o salário justo para que possa florescer em sua potencialidade espiritual: cultura, lazer, criatividade. Tais direitos ficam restritos àqueles que podem gravitar em torno do culto hedonista do corpo. Há um infindável estímulo consumista para exaltar a estética do corpo: publicações, cosméticos, academias de ginásticas, cardápios diet etc.
A cultura da vida sacraliza o corpo. Para Jesus, ele é morada de Deus. A própria divindade se faz corpo no homem Jesus. A quem lhe indagou o percurso para a vida eterna (o doutor da lei, Zaqueu, Nicodemos etc.), Jesus respondeu com ironia. A quem lhe pediu vida nesta vida, um corpo saudável como expressão do dom maior de Deus, Jesus atendeu com amor: o cego que pediu a cura para recuperar a visão, o paralítico que desejou andar, a mulher atormentada pela hemorragia, o homem da mão seca que suplicou por saúde. Jesus restaurou corpos (milagres); alimentou corpos (partilha dos pães e dos peixes); celebrou corpos (bodas de Caná e o Reino de Deus comparado a banquetes).
Uma sociedade que segrega corpos pela cor da pele ou submete-os por relações injustas de trabalho é contrária aos princípios do Evangelho. O corpo de Deus, em Jesus, é rejeitado, difamado, preso, condenado, torturado, crucificado. Contudo, “no primeiro dia da semana”, seu corpo ressuscitou, primícia e promessa de que nossos corpos haverão de vencer a morte.
Celebrado na festa de Corpus Christi, Jesus permanece entre nós na forma de pão. Todo pão que se partilha é eucaristicamente dotado de presença divina. Pães materiais – salário digno, emprego, direitos reconhecidos; e pães simbólicos – o gesto de carinho, a solidariedade, o amor.
Frei Betto é religioso, teólogo e escritor, autor de diversos livros de espiritualidade e outros. Texto adaptado de dois artigos de Frei Betto – Fontes: https://oglobo.globo.com/sociedade/a-festa-do-corpo-12921861 e https://www.correiocidadania.com.br/antigo/ed144/opiniao.htm